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Entendendo mal o software livre

Será que os jornalistas da Globo sabem o que é software livre? Mas é claro que não!

Um amigo me envia esta notícia no portal Globo.com e fica esperando minha reação. Eu sabia que levaria horas para escrever a seguinte diatribe. Mas decepcioná-lo nunca!

O texto tem duas partes. A primeira noticia o resultado de uma pesquisa. A segunda vira ainda mais um artigo do gênero “Quem tem medo do open source?”. Esse trecho final, para começar, me parece desnecessário. Hoje acho que nem Eric S. Raymond evangeliza mais. Além disso, há erros grosseiros nesses últimos parágrafos. Vou tentar não me preocupar com as asneiras de português e falar só do conteúdo.

A besteira mais ululante e que tanta gente comete é a confusão entre software livre e software grátis. Por exemplo: “Marcelo Okano, confere inúmeras vantagens aos softwares livres frente aos aplicativos pagos.” (A vírgula é do original.)

Vamos combinar uma coisa. Software livre não é o mesmo que software grátis. Essas duas questões são ortogonais. “Livre” opõe-se a “proprietário”. O primeiro pode ser modificado e redistribuído sem dar satisfação a ninguém. O outro não.

O artigo diz: A forma de licenciamento dos softwares livres é gratuita. Isso é freqüente, mas nem sempre. Nada impede uma empresa que produz software livre de cobrar por ele e muitas o fazem. Exemplos: Red Hat, Mandriva, MySQL, db4o etc. O licenciamento é uma questão cheia de firulas; existem muitas maneiras de fazê-lo e uma pessoa comum levará semanas para entender o que está acontecendo.

Nessa esteira, o segundo parágrafo sugere que a “crença geral” é a de que software livre é software para pobre. Verdade? Crença de quem, essa? Da Globo? Pergunto porque já faz anos que o open source é a maneira de trabalhar preferida das maiores empresas de tecnologia (com poucas exceções). Por exemplo, as empresas gostam de fazer tudo em Java e neste universo quase todos os componentes são de código aberto.

Quem fala do open source como se ainda fosse minoria o faz por conhecer somente o monopólio do desktop.

Dito isto, na prática o preço do software livre tende a ser muito competitivo porque o cliente pode mudar de fornecedor sem trocar de software. Por exemplo, se uma empresa fornecedora de suporte ao banco de dados Postgres cometer muitos erros ou cobrar caro demais, o cliente pode mudar de fornecedora e continuar usando o mesmo software.

A liberdade de redistribuir o software também reprime preços altos. O argumento da empresa que vende o software acaba sendo o suporte — pois o mesmo software pode geralmente ser obtido de outra fonte.

Os trechos sobre confiabilidade e segurança são mais ou menos verdadeiros. É que são expressos de maneira tão desajeitada que ficam sujeitos à fácil impugnação pelos adversários. “Há um firewall feito para Linux.” Um? UM firewall? Haja paciência com quem ouviu o galo cantar mas não sabe onde...

O parágrafo seguinte sugere que o Samba é um novo avanço. Como se nossos computadores não conversassem com a rede do Windows há mais de uma década.

“O Linux, por exemplo, é um sistema operacional, sendo o único livre.” Quem disse isso esqueceu-se de FreeBSD, OpenBSD, OpenSolaris... Eu estou me esquecendo de outros. Em números absolutos, existem mais sistemas operacionais livres do que proprietários.

“Pessoas que desenvolvem softwares livres não entendem como uma empresa pode cobrar muito mais pelos programas do que gastou para desenvolvê-los. Como eram contra essa filosofia, lançaram os aplicativos gratuitos”, analisa.

Capitalistas bonzinhos? Isso não existe, é uma asneira de proporções mastodônticas. A dominância do open source é um efeito da acirrada competição na área de tecnologia. Produtos proprietários não sobrevivem se houver equivalente de código aberto. Isto só não atingiu ainda uns poucos mercados em que há monopólio (e.g. Windows). O Adobe Photoshop só sobreviverá, custando o quanto custa, enquanto o Gimp continuar sendo muito inferior. Numa situação de equivalência (ou quase), isso mudará.

O último parágrafo da notícia é tão errado que é incompreensível. Confunde software que roda no servidor (Apache) com software que roda no cliente (navegador do Windows). Também chama de desvantagem do “programa gratuito” a incompatibilidade que na realidade é causada pelo outro lado (sites de bancos que exigem o Internet Explorer). Teria sido melhor não dizer nada.

Finalmente, além de falar de software livre versus software pago, o texto deixa de mencionar que o software livre não é só software. É uma filosofia libertária, é uma causa moral. O primeiro passo para suprimir essa causa foi a invenção do “open source” (código aberto), que é o mesmo software livre, porém sem o argumento de que todo software deveria ser livre pois isto é que é ético.

A IBM fez uma campanha milionária de marketing em prol do Linux. Ao mesmo tempo, gosta de ter alguns produtos proprietários sempre que possível. A IBM não se interessa, destarte, em promover a causa ética do software livre. Por isso falam em open source. Sempre os vi falar em open source.

No Brasil, os meios de comunicação não têm a mesma hombridade. Eles causam mesmo a confusão, usando o termo software livre. Quem lê a notícia da Globo pensa que entendeu e já sabe tudo sobre o assunto. Sequer pode imaginar que a questão é bem mais profunda, é uma questão de liberdade individual mesmo, de direito público e privado. Uma questão que deve ser discutida, não apagada.

Conclusão: mesmo quando dá boas notícias, a indústria cultural o faz de maneira repugnante e estúpida. O propósito é cultivar o framework mental do público, excluindo ou confundindo o que não interessa ao sistema. As razões e o como disto tudo são bem explicadas no documentário “Manufacturing Consent: Noam Chomsky and the Media”. A primeira hora desse filme é devagar, mas depois esquenta.

E quem quiser entender corretamente o software livre conheça o homem que o inventou.