― Acho que hoje ele não vem. Já está tarde ― disse vovô, esperançoso.
Olhei para trás: os olhinhos castanhos de meu priminho Vit ostentavam sua diversão. Como gostávamos de brincar de espião! Fiz sinal de silêncio com a maior veemência.
― Ele sempre vem no início do mês. Pode tardar, mas não tem misericórdia ― soluçou vovó.
― Arre, mulher! É por isso que nada de bom acontece nesta casa! ― bufou vovô roucamente.
Estiquei a cabeça para além da quina do armário. Suas feições graves não me encontraram.
Titia surgiu do quintal limpando as mãos. Escondi-me de novo. ― Mas ela tem razão ― contemporizou. ― Ficando aqui, estamos sujeitos a essa desgraça!
― O que não tem remédio... ― grunhiu vovô, aproximando-se. ― Isso não tem remédio!
Disparamos na direção da entrada da casa com estardalhaço. Vit continuou brincando como se não tivesse escutado nada. Eu era maior e não sei se entendia mais, mas a conversa me deixara um pouco preocupado.
― Crianças, não saiam! ― gritou vovó, lá da cozinha.
Esgueirando-nos pelos cantos, chegamos à janela da frente. Olhamos para fora com cuidado para não sermos detectados, pois restava uma pitada de crepúsculo. Ventava muito: a árvore do outro lado da rua parecia tentar desprender-se do chão. Meus pensamentos foram interrompidos por um estalo medonho, seguido de um trovão, que arregalou os olhinhos do meu primo de susto ― e eu mesmo tive um arrepio, que o raio deve ter caído bem ao lado da casa. Em seguida desabou uma chuva de granizo, a qual assistimos da janela.
Um carro ― lembro que era grande e escuro ― parou em frente à nossa casa. Um minuto depois, desceu uma enorme figura oculta numa capa de chuva bege. Enquanto fechava a porta, pensei ter avistado... o quê? Pelo?
Vit riu baixinho e me puxou para baixo. Empurrei-o ― tinha que olhar ― algo não estava certo.
O vulto dirigiu-se à casa da frente. Segundos depois, abriram e ele entrou.
― É um mon ― começou Vit, mas tapei sua boca, pois nesse momento pude discernir gritos vindo da casa da frente, mesmo sob a chuva. O alarido durou alguns segundos, o que era? Consternação? Pavor? Meu mal-estar só aumentava.
A chuva agora estava mais fraca. A porta se abriu e o vulto veio direto para a nossa casa. A cada passo, um pesado estalido. Vit apertou meu braço com aflição. Arrependi-me de fitá-lo, pois ele detectou o medo nos meus olhos. A campainha soou dura: de um pulo, puxei meu primo para trás da cortina, de onde assistimos o resto da hedionda cena.
Vovô veio da cozinha com um olhar de profundo desgosto. ― Não abra ― instou vovó, mas ele a ignorou e escancarou a porta de uma vez só. E junto com a chuva, aquela voz odiosa entrou na casa:
― O aluguel atrasado, senhores.