Nando's blog
About Nando Nando's blog Posts about video, movies etc. Posts about computing Posts about music Posts about literature Philosophical posts Posts about programming

Inventando nomes para as notas “pretas”

Solfejar cantando os nomes das notas tem uma utilidade da qual você não está consciente: Cultivar o ouvido. Mas as notas pretas não têm nome próprio... ou melhor, não tinham.

O que é ouvido absoluto

Ouvido absoluto é a capacidade de ouvir uma nota e saber seu nome tão instantaneamente quanto podemos dizer “laranja” ao ver a cor correspondente. (Uma ou mais notas.) Também expressa a habilidade de pensar e cantar uma nota sem nenhuma referência anterior (principalmente ao acordar de manhã).

A maioria dos humanos não tem ouvido absoluto – mesmo entre os músicos. Em última análise, ele não é necessário. Mas os poucos que o possuem podem ser mais rápidos em certas atividades, por exemplo a improvisação ou o “tocar de ouvido”.

Dentre os grandes compositores, é certo que Mozart tinha ouvido absoluto (por várias anedotas de sua infância). Também é provável que Beethoven o tivesse, primeiro porque falava muito nas peculiaridades das tonalidades, e se pensarmos no caso, foi capaz de compor certas harmonias inovadoras da Nona Sinfonia totalmente surdo. Quanto aos outros grandes compositores, não acho que o caso de nenhum deles seja comprovado.

Você também poderia ter ouvido absoluto?

Acredita-se que o ouvido absoluto seja inato, ou determinado na tenra infância ao se exercer atividade musical. Por isso fiquei curioso ao ver que um americano, David Lucas Burge, vende um curso de Perfect Pitch. Segundo ele, o ouvido absoluto pode ser adquirido treinando as técnicas ensinadas no curso...

Consultada, uma amiga pianista que possui ouvido absoluto contou-me que o dela certamente foi aprendido. Mas como assim? Simples. A professora dela solfejava tudo cantando os nomes das notas. A memória musical dela associou as alturas diretamente aos nomes.

Às vezes entram em jogo no ouvido absoluto certos tipos de sinestesia. A pessoa pode ver, por exemplo, cores nas notas (não com os olhos, nem com o ouvido, mas com a mente). Mas não existe a “cor certa” para o mi bemol. Cada um tem a sua, ninguém concorda. É tudo muito arbitrário.

Não é o caso da minha amiga pianista. Ela não usa muito esse papo de cores.

Você que tanto pratica o seu instrumento, nas raras vezes em que solfeja, tem preguiça de cantar os nomes das notas. Talvez você cante “lá lá lá”. Talvez você nem cante, só fale os nomes das notas no ritmo... Fique sabendo que você pode estar perdendo a oportunidade de adquirir ouvido absoluto. Assim fui levado a crer.

A necessidade de nomes para as notas com acidente

Cantar os nomes das notas é fácil enquanto estivermos estritamente em dó maior. Sol, dó, lá, fá, mi, dó, ré, segundo a Noviça Rebelde, tudo muito fácil. Sabe por quê?

Porque ela deixou os acidentes para a sequência.

Cantar “siii... si bemoool...” simplesmente não funciona: o “si bemoool” soa como 3 notas seguidas e toma muito tempo. Um professor nosso mandava estalar os dedos ao cantar as notas com acidente (ou seja, dizer somente “si” e estalar o dedo). Isso também não é prático, os nossos dedos devem ficar livres para outros fins musicais! O que precisamos é, finalmente, de direitos civis. Nomes para as pretas, em igualdade com as brancas.

Também precisamos reconhecer que vivemos num mundo temperado e enarmônico. A distinção entre fá sustenido e sol bemol, no contexto de um solfejo rotineiro da música ocidental tradicional, é especialmente irrelevante para o nosso propósito específico.

Tentemos agora inventar os melhores nomes monossílabos para as cinco notas “anônimas” que estão no meio de dó, ré, mi, fá, sol, lá e si. (Até onde eu sei, ninguém fez isso antes.)

De onde vêm dó, ré, mi e sua turma

Neste momento é interessante lembrar que esses nomes foram inventados na Idade Média pelo monge Guido d’Arezzo, pai da notação musical tradicional. E originalmente as notas se chamavam ut, re, mi, fa, sol, la, si. De onde vieram? Havia um hino em que o 1º verso começava no dó, o 2º no ré e assim por diante. Então na verdade as notas é que tomaram os seus nomes da 1ª sílaba de cada verso:

Ut queant laxis
    resonare fibris,
Mira gestorum
    famuli tuorum,
Solve polluti
    labii reatum,
Sancte Ioannes.

Essa escala que herdamos tem as seguintes características interessantes:

  • Dó substituiu Ut por ser mais fácil de solfejar. Ut tinha duas desvantagens: a vogal U e a consoante no final. As vogais abertas são mais fáceis de cantar. E todos os outros monossílabos têm uma consoante para o ataque e uma vogal.
  • Si é substituída por Ti em algumas culturas. Ti tem a vantagem de não repetir a consoante S (já usada na nota Sol) e começar com uma consoante mais curta.
  • Assim nenhuma consoante é repetida.
  • A vogal “a”, talvez a melhor para soltar a voz, já é representada 2 vezes: e .
  • A vogal “i”, boa para colocar a voz no lugar (cante “ni ni”), é usada em mi e si.
  • A vogal aberta “ó” está presente em dó e sol, mas não temos a vogal fechada ô.
  • A vogal aberta “é” só existe no ré e não temos a vogal fechada ê.
  • A vogal “u” não aparece.

Ao inventar nossos monossílabos, fizemos as seguintes presunções (que não estão cientificamente confirmadas):

  • O solfejo resultará mais rico se tivermos a máxima variedade de consoantes e vogais.
  • Vogais abertas são mais cantáveis que as fechadas.
  • Mesmo assim, é injustiça ainda não termos nenhum U.
../../../_images/bupagukexo.gif

O batismo

Destarte proponho os seguintes novos monossílabos:

  • Dó# = BU (“boo”)
  • Ré# = PA (“pah”)
  • Fá# = GU (“goo”)
  • Sol# = KÊ (“kay”)
  • Lá# = XÔ (“show”)

Advirto entretanto que esses nomes não estão testados...

Update

Depois de escrever isto, descobri no artigo “Solfège” da Wikipedia que na Inglaterra já existe um sistema em que as pretas ascendentes são di ri fi si li, e descendentes são ra me se le te. Mas não sei até que ponto não é utilizado... todo mundo diz “B flat”. Parece-me que um sistema enarmônico seria mais útil para solfejar (embora pior para ensinar harmonia). Também acredito ainda que esse sistema bretão repita consoantes e vogais demais para soar bem.

Também descobri que não sou o primeiro a inventar um sistema enarmônico e chamá-lo assim. “The important thing is to pick a system and learn it thoroughly. (I use my own enharmonic system in which the chromatic scale is ‘do gu ri bu mi fa ka so ja la pa ti do.’)”, diz Benjamin Crowell na página 54 de “Eyes and Ears”.